O papel do jornalismo de dados na fiscalização do poder público e no combate à corrupção no brasil

O papel do jornalismo de dados na fiscalização do poder público e no combate à corrupção no brasil

Nos últimos anos, falar de corrupção no Brasil virou quase rotina. Escândalos se repetem, operações ganham nomes de efeito e, no meio desse cenário, surge uma pergunta incômoda: como fiscalizar, de forma sistemática, um Estado que movimenta bilhões todos os dias? Uma parte importante dessa resposta passa pelo jornalismo de dados.

Mais do que uma “moda tecnológica” nas redações, o jornalismo de dados se tornou uma ferramenta central de controle social. Ele combina técnicas de programação, estatística e reportagem tradicional para transformar planilhas, bases públicas e números dispersos em informação compreensível – e, muitas vezes, em denúncias concretas.

O que é, na prática, jornalismo de dados

Jornalismo de dados não é apenas “fazer gráficos bonitos”. Trata-se de um método de apuração baseado em:

  • coleta sistemática de dados (públicos ou obtidos via pedido formal);

  • organização, limpeza e cruzamento dessas informações;

  • análise crítica dos números à luz da legislação e das políticas públicas;

  • tradução dos achados em linguagem acessível para o público.

Em vez de depender apenas de “vazamentos” ou declarações, o repórter passa a trabalhar com evidências estruturadas. Um contrato suspeito deixa de ser apenas uma denúncia genérica e passa a ser um item comparável com outras compras, outras licitações, outros preços praticados pelo próprio governo.

Quando bem feito, esse tipo de jornalismo permite identificar padrões que, a olho nu, seriam invisíveis: empresas que sempre vencem licitações em determinada região, gastos públicos que fogem completamente da média, repasses concentrados em poucos municípios, entre outros sinais de alerta.

Leis de transparência: a porta de entrada para os dados públicos

O avanço do jornalismo de dados no Brasil está diretamente ligado ao fortalecimento de marcos legais de transparência. Três referências são centrais nesse processo:

  • Lei de Acesso à Informação (LAI) – Lei 12.527/2011: garante o direito de qualquer cidadão solicitar dados de órgãos públicos, inclusive em formato aberto. Jornalistas utilizam a LAI diariamente para obter contratos, folhas de pagamento, pareceres técnicos e bases que não estão disponíveis de forma ampla.

  • Lei da Transparência – LC 131/2009: obrigou União, estados e municípios a divulgarem, em tempo quase real, dados sobre gastos públicos. É a base dos portais de transparência que hoje alimentam inúmeras reportagens e investigações.

  • Lei de Responsabilidade Fiscal – LC 101/2000: embora anterior à popularização do jornalismo de dados, estabeleceu padrões de prestação de contas que geram relatórios e indicadores essenciais para análises econômicas e de gestão.

Ferramentas oficiais como o Portal da Transparência do governo federal, os sistemas de compras públicas (como o Compras.gov.br) e relatórios do TCU e das Controladorias estaduais são hoje fontes rotineiras para redações que trabalham com dados.

Na prática, o jornalismo de dados atua como uma espécie de “auditoria extraoficial” da sociedade civil, revisitando informações já disponíveis, mas muitas vezes ignoradas pelos próprios órgãos que as produzem.

Como o jornalismo de dados ajuda a fiscalizar o poder público

A fiscalização baseada em dados se dá em várias frentes. Algumas das mais relevantes são:

  • Monitoramento de compras e contratos: ao comparar valores pagos por diferentes órgãos para o mesmo produto (medicamentos, alimentos, equipamentos), é possível detectar sobrepreço, direcionamento de licitação ou concentração de contratos em poucos fornecedores.

  • Acompanhamento de obras públicas: cruzar dados de empenho e pagamento com cronogramas físicos e relatórios de execução permite identificar obras atrasadas, paralisadas ou pagas em desacordo com o avanço real.

  • Rastreamento de emendas parlamentares: seguir o caminho do dinheiro – do orçamento da União até o município e, dali, ao contrato específico – ajuda a expor esquemas de desvio, superfaturamento ou uso político de recursos.

  • Análise de folha de pagamento: verificar remunerações acima do teto constitucional, acúmulo irregular de cargos, supersalários e benefícios pouco transparentes é um campo fértil de investigação, especialmente nos níveis estadual e municipal.

  • Avaliação de políticas públicas: dados abertos de saúde, educação, segurança e assistência social permitem medir se programas governamentais entregam resultados compatíveis com o volume de recursos aplicados.

Em todos esses casos, a principal vantagem é a possibilidade de sair da denúncia genérica para uma exposição objetiva: valores, datas, nomes de empresas, números de processos, bases de comparação. Isso reduz espaço para disputas puramente retóricas e fortalece o debate público com fatos verificáveis.

Casos emblemáticos: quando os dados ajudam a expor irregularidades

Vários exemplos brasileiros mostram como o uso sistemático de dados pode revelar problemas estruturais na gestão pública.

Um caso frequentemente citado é o do projeto Operação Serenata de Amor, iniciativa cívica que utilizou programação e análise de dados para investigar reembolsos da Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (CEAP) na Câmara dos Deputados. O sistema analisou:

  • descrições de notas fiscais;

  • valores médios por tipo de despesa;

  • horário e local das compras em relação à agenda do parlamentar;

  • padrões repetidos de reembolso em serviços específicos.

A partir daí, foram identificados milhares de gastos suspeitos, desde refeições incompatíveis com a quantidade de pessoas até serviços que não pareciam relacionados ao mandato. Embora o projeto não fosse jornalístico em si, várias reportagens se apoiaram nessas descobertas para pressionar pela revisão de regras e pela devolução de recursos.

Outro exemplo está nas investigações sobre supersalários no serviço público. Ao cruzar dados de folhas de pagamento de tribunais, assembleias legislativas, câmaras municipais e empresas estatais, jornalistas identificaram remunerações muito acima do teto constitucional, mascaradas por gratificações, verbas indenizatórias e outras rubricas. O impacto não foi apenas de imagem: em alguns casos, houve abertura de processos administrativos e revisão de normas internas.

Durante a pandemia de Covid-19, equipes de jornalismo de dados monitoraram contratos emergenciais de estados e municípios para compra de respiradores, insumos hospitalares e equipamentos. Em várias regiões, reportagens baseadas em dados de compras públicas revelaram:

  • empresas sem histórico na área de saúde recebendo contratos milionários;

  • preços muito acima do praticado por outros entes federativos;

  • entrega parcial ou não entrega dos produtos contratados.

Esses achados, transformados em reportagens, alimentaram investigações de Ministérios Públicos estaduais, Tribunais de Contas e da Polícia Federal, demonstrando a capacidade do jornalismo de dados de funcionar como gatilho para a atuação de órgãos de controle.

A diferença entre dado aberto e dado utilizável

Nem todo dado “aberto” é realmente utilizável. Um arquivo em PDF com centenas de páginas de tabelas escaneadas, por exemplo, é tecnicamente público, mas dificulta enormemente qualquer tipo de análise. Por isso, uma parte importante do trabalho de jornalistas de dados é justamente cobrar qualidade na transparência.

Alguns critérios fundamentais para que a informação possa, de fato, ser fiscalizada são:

  • Formato aberto (CSV, XLSX, JSON), em vez de apenas PDFs;

  • Dados atualizados com frequência definida e estável;

  • Histórico disponível, permitindo séries temporais e comparação entre períodos;

  • Metodologia clara, explicando como o dado foi produzido e quais são suas limitações;

  • Identificadores consistentes (CNPJ, CPF, códigos de processos) que permitam cruzamentos.

Quando esses elementos não estão presentes, a fiscalização se torna mais lenta, cara e sujeita a erros. Ainda assim, mesmo em cenários adversos, técnicas como raspagem de dados (web scraping), reconhecimento de caracteres (OCR) e padronização automatizada permitem que redações avancem sobre materiais pouco amigáveis.

Limites, riscos e desafios do jornalismo de dados

Se o jornalismo de dados é tão poderoso, por que ele ainda não “resolveu” o problema da corrupção no Brasil? A resposta passa por reconhecer seus limites e desafios.

Alguns dos principais obstáculos são:

  • Capacidade técnica limitada: muitas redações, principalmente fora dos grandes centros, não têm equipes especializadas em dados. Repórteres acumulam funções e não dispõem de tempo ou recursos para investigações mais profundas.

  • Falta de padronização entre entes federativos: cada estado, município ou órgão adota formatos e plataformas diferentes, o que dificulta comparações e análises em escala nacional.

  • Dados incompletos ou opacos: mesmo com a LAI, há resistência em disponibilizar certas informações, especialmente em nível municipal. Em alguns casos, o dado existe, mas não é publicado de forma estruturada.

  • Risco de interpretações apressadas: números não falam sozinhos. Sem contexto e checagem cuidadosa, análises equivocadas podem gerar acusações injustas ou distorcidas.

  • Pressões políticas e econômicas: reportagens que mexem com contratos de grande valor ou com figuras influentes tendem a enfrentar tentativas de intimidação, processos judiciais e campanhas de desinformação.

Além disso, é importante lembrar que o jornalismo de dados não substitui a apuração tradicional. Entrevistas, visitas de campo, acesso a documentos físicos e conversas com fontes internas ainda são essenciais para confirmar hipóteses e entender a dimensão real de cada caso.

Como redações podem se estruturar para usar dados na fiscalização

Mesmo veículos médios ou pequenos podem incorporar o jornalismo de dados à rotina, sem necessariamente criar grandes departamentos. Alguns caminhos práticos incluem:

  • Treinamento básico da equipe em planilhas, estatística descritiva e uso de ferramentas gratuitas, como Google Sheets, Datawrapper e QGIS (para mapas);

  • Criação de rotinas automáticas para baixar periodicamente bases relevantes (licitações, folha de pagamento, gastos com diárias e passagens);

  • Parcerias com universidades e coletivos cívicos, que podem apoiar na parte técnica em troca de visibilidade ou acesso a dados tratados;

  • Definição de temas prioritários (por exemplo, saúde municipal, transporte público, merenda escolar) para evitar dispersão de esforços;

  • Uso sistemático da LAI para complementar o que não está disponível em portais de transparência.

Um aspecto decisivo é a cultura interna. Quando editores e diretores entendem que uma boa investigação baseada em dados pode levar semanas ou meses, em vez de horas, torna-se possível planejar coberturas com impacto real, e não apenas reações pontuais a fatos já conhecidos.

O impacto sobre a percepção pública da corrupção

Há um debate recorrente: quanto mais a imprensa revela casos de corrupção, maior é a sensação de que “tudo está piorando”? O jornalismo de dados pode ajudar a qualificar essa percepção.

Ao trabalhar com séries históricas e indicadores, é possível mostrar não apenas escândalos isolados, mas também:

  • melhoras em mecanismos de controle ao longo do tempo;

  • aumento de transparência em determinadas áreas;

  • redução de práticas irregulares após mudanças de regras;

  • diferenças entre setores e níveis de governo.

Isso não significa suavizar problemas reais, mas oferecer ao leitor um quadro mais completo. Em vez de apenas reforçar a ideia de que “nada funciona”, reportagens baseadas em dados ajudam a identificar onde, de fato, há avanços, onde permanecem gargalos e quais reformas têm efeito mensurável.

O papel do cidadão: de leitor passivo a fiscal ativo

O jornalismo de dados não é um fim em si mesmo. Ele ganha força quando desperta no público a vontade – e a capacidade – de acompanhar o uso do dinheiro público.

Algumas formas práticas de participação incluem:

  • Consultar regularmente portais de transparência do seu município e estado, especialmente em áreas que afetam diretamente o seu cotidiano;

  • Reproduzir perguntas de reportagens junto a vereadores, deputados e prefeitos, pressionando por respostas e mudanças;

  • Usar a Lei de Acesso à Informação para solicitar dados específicos de interesse local, como contratos de transporte escolar, coleta de lixo ou iluminação pública;

  • Compartilhar reportagens de qualidade, ajudando a ampliar o alcance de investigações bem fundamentadas;

  • Participar de audiências públicas munido de informação, questionando prioridades orçamentárias com base em números e não apenas em impressões.

Quando reportagens baseadas em dados encontram leitores dispostos a agir, o impacto tende a ir além da exposição momentânea. Passa a influenciar eleições, ajustes de políticas públicas e, em alguns casos, a própria cultura política local.

Em um país de dimensões continentais, com milhões de contratos, obras e programas em andamento, nenhum órgão de controle consegue estar em todos os lugares ao mesmo tempo. O jornalismo de dados, aliado a uma cidadania atenta, amplia a rede de vigilância sobre o poder público.

Não é uma solução mágica. Mas é uma ferramenta concreta, testada e em constante aperfeiçoamento, que ajuda a transformar números aparentemente frios em algo muito palpável: a garantia de que o dinheiro coletivo seja usado de forma mais transparente, eficiente e responsável.

Enquanto a corrupção buscar brechas em planilhas e orçamentos, haverá espaço – e necessidade – para jornalistas que dominem a linguagem dos dados. E para leitores que exijam que essa linguagem seja traduzida de forma clara, honesta e acessível.