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Crise climática e enchentes no sul: o que a imprensa ainda não está mostrando sobre a vulnerabilidade das cidades brasileiras

Crise climática e enchentes no sul: o que a imprensa ainda não está mostrando sobre a vulnerabilidade das cidades brasileiras

Crise climática e enchentes no sul: o que a imprensa ainda não está mostrando sobre a vulnerabilidade das cidades brasileiras

A crise climática voltou ao centro do debate nacional depois das enchentes históricas no Rio Grande do Sul em 2024. Imagens de cidades submersas, milhares de desabrigados e infraestrutura destruída dominaram o noticiário por semanas. Mas, passado o choque inicial, uma pergunta permanece: o que esses eventos dizem sobre a vulnerabilidade das cidades brasileiras – e por que parte da imprensa ainda trata esses desastres como se fossem apenas “acidentes naturais”?

Neste texto, vamos olhar além das cenas de resgate e dos balanços de mortos e desabrigados. A crise climática está expondo problemas estruturais de planejamento urbano, desigualdade social, financiamento público e governança que raramente aparecem nos telejornais do horário nobre.

Enchente não é surpresa, é padrão: o que os dados já mostravam

Quando um rio transborda de forma extrema, é comum ouvir que foi um “evento imprevisível” ou “uma tragédia inesperada”. Mas o histórico recente no Brasil conta outra história.

Segundo dados do Atlas de Desastres Naturais do CEMADEN (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) e da Defesa Civil:

No Rio Grande do Sul, os números já indicavam um padrão claro antes de 2024:

Ou seja: a crise climática não explica tudo, mas amplifica um problema que já existia – cidades construídas sem levar a sério o comportamento dos rios, do solo e do clima.

O mapa da vulnerabilidade: quem mais sofre nas enchentes?

Boa parte das reportagens mostra as enchentes a partir de imagens aéreas: bairros inteiros alagados, pontes caídas, estradas interrompidas. Mas o mapa de quem perde mais quase nunca é homogêneo.

No Brasil, os grupos mais afetados por enchentes e deslizamentos costumam ser:

Pesquisas do IBGE e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que a população preta e parda está desproporcionalmente presente em assentamentos precários e favelas, muitas vezes em áreas sujeitas a enchentes. Isso significa que a crise climática também é, na prática, um amplificador de desigualdade racial e social.

O que costuma ficar de fora da cobertura?

Sem esse tipo de dado, a enchente aparece como um evento isolado. Na realidade, para muitos brasileiros, ela é recorrente – quase parte do calendário.

Planejamento urbano: quando o “normal” já é errado

As imagens de bairros inteiros submersos levantam uma pergunta incômoda: por que essas casas, prédios e comércios foram autorizados a ser construídos ali?

Em teoria, as cidades brasileiras deveriam ser planejadas com base em:

Na prática, três fatores pesam muito:

Isso não é exclusividade do Sul. Exemplos recentes em diferentes regiões mostram o mesmo padrão:

Quando a enchente acontece, o foco costuma ficar na chuva “anormal”. Mas pouco se discute que, em muitas cidades, o “normal” já está errado há décadas.

Infraestrutura esquecida: drenagem, rios e diques fora do noticiário

Enquanto helicópteros sobrevoam áreas inundadas, quase não se fala de itens menos “fotogênicos”, mas decisivos, como:

Em muitas cidades brasileiras, a drenagem urbana opera perto do limite mesmo em dias de chuva forte “normal”. Quando um evento extremo ocorre – como chuvas intensas em poucos dias, associadas a sistemas meteorológicos potentes, que se tornam mais prováveis com a crise climática –, a infraestrutura simplesmente não acompanha.

Além disso, obras de macrodrenagem muitas vezes seguem lógicas antigas, focadas apenas em “retirar a água rápido” de um bairro, sem considerar:

Esses temas raramente viram manchete. Mas são justamente eles que definem se uma cidade vai enfrentar a próxima enxurrada com resiliência ou com colapso.

O custo econômico da enchente e o silêncio sobre prevenção

Outra dimensão pouco explorada é a econômica. Depois da tragédia, é comum ver números como “prejuízo de bilhões de reais” em infraestrutura, agricultura e comércio. No entanto, quase ninguém compara esse valor com o que teria custado investir em prevenção.

Alguns estudos internacionais e nacionais apontam uma relação relativamente estável: cada real investido em prevenção e adaptação a desastres pode evitar algo entre 4 e 7 reais em prejuízos futuros. Isso inclui:

No Brasil, porém, os dados de execução orçamentária mostram um padrão recorrente:

É como se a conta só fosse apresentada quando a água já chegou ao teto. E a discussão pública quase nunca inclui a seguinte questão: quanto poderíamos estar economizando – em dinheiro e em vidas – se a lógica fosse invertida?

Governança e coordenação: quem cuida de quê quando tudo alaga?

As enchentes no Sul também evidenciaram a complexidade da gestão de desastres no Brasil. A responsabilidade é dividida entre:

Na teoria, essa divisão permite uma resposta articulada. Na prática, surgem problemas conhecidos:

Um ponto pouco abordado em reportagens mais rápidas é: quantos municípios brasileiros têm equipes técnicas suficientes para interpretar dados climáticos, elaborar planos de adaptação e articular respostas rápidas?

Em boa parte dos pequenos e médios municípios, a defesa civil é composta por equipes reduzidas, com acúmulo de funções e recursos limitados. Sem suporte técnico estruturado, as prefeituras acabam reagindo mais do que se preparando.

O que muda com a crise climática: o passado já não é um bom guia

Há um aspecto central da crise climática que ainda aparece pouco no noticiário: a noção de que o “clima de referência” – aquele padrão histórico de chuva, temperatura e cheias usado para planejar cidades e obras – está em transformação.

Nas últimas décadas, o IPCC e diversos estudos regionais vêm apontando:

Isso significa que projetos de infraestrutura baseados em séries históricas antigas, sem considerar projeções climáticas futuras, podem nascer obsoletos. E, ainda assim, muitos investimentos continuam sendo planejados como se o cenário de 2050 fosse parecido com o do ano 2000.

Quando se fala em “adaptação climática”, não se trata apenas de plantar árvores ou instalar painéis solares. É, sobretudo, revisar:

Sem essa atualização, as cidades ficam presas a um passado que já não descreve o clima que está vindo.

O que poderia estar no centro do debate e ainda não está

Em vez de apenas perguntar “quando a água vai baixar?”, outras questões poderiam ocupar mais espaço no debate público – e na cobertura jornalística – após enchentes como as do Sul:

Essas perguntas não têm respostas simples, nem manchetes fáceis. Mas são essenciais para transformar o ciclo de “tragédia – comoção – esquecimento” em um processo de aprendizagem e mudança.

Para o leitor, a reflexão também é prática: a cidade onde você vive tem mapas de risco acessíveis? Sirenes funcionando? Canais oficiais de alerta em caso de enchente? As escolas dos seus filhos sabem o que fazer se o bairro for inundado?

A crise climática não está apenas “no Sul” ou “no futuro”. Ela já está moldando o cotidiano de milhões de brasileiros. Olhar para as enchentes com atenção aos dados, às estruturas e às decisões – e não só às imagens mais chocantes – pode ser o primeiro passo para exigir cidades menos vulneráveis e mais preparadas.

Porque, se a chuva extrema vai ser cada vez menos exceção, a negligência não pode continuar sendo a regra.

Felipe

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