A crise climática voltou ao centro do debate nacional depois das enchentes históricas no Rio Grande do Sul em 2024. Imagens de cidades submersas, milhares de desabrigados e infraestrutura destruída dominaram o noticiário por semanas. Mas, passado o choque inicial, uma pergunta permanece: o que esses eventos dizem sobre a vulnerabilidade das cidades brasileiras – e por que parte da imprensa ainda trata esses desastres como se fossem apenas “acidentes naturais”?
Neste texto, vamos olhar além das cenas de resgate e dos balanços de mortos e desabrigados. A crise climática está expondo problemas estruturais de planejamento urbano, desigualdade social, financiamento público e governança que raramente aparecem nos telejornais do horário nobre.
Enchente não é surpresa, é padrão: o que os dados já mostravam
Quando um rio transborda de forma extrema, é comum ouvir que foi um “evento imprevisível” ou “uma tragédia inesperada”. Mas o histórico recente no Brasil conta outra história.
Segundo dados do Atlas de Desastres Naturais do CEMADEN (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) e da Defesa Civil:
- Entre 1991 e 2022, mais de 60% dos municípios brasileiros registraram ao menos um desastre relacionado a enchentes ou deslizamentos.
- Aproximadamente 8 em cada 10 desastres registrados no país estão ligados a chuvas intensas (enxurradas, inundações, deslizamentos).
- Eventos extremos estão se tornando mais frequentes e mais intensos em várias regiões, coerentes com o que relatam os Relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
No Rio Grande do Sul, os números já indicavam um padrão claro antes de 2024:
- O estado passou por grandes enchentes em 1941, 1967, 1983, 2015 e 2023.
- Estudos de pesquisadores da UFRGS já alertavam há anos que Porto Alegre e cidades da Região Metropolitana tinham infraestrutura de drenagem e diques subdimensionados para cenários de chuvas mais intensas.
- Relatórios técnicos indicavam risco elevado em áreas específicas, onde, mesmo assim, se manteve ou ampliou a ocupação urbana.
Ou seja: a crise climática não explica tudo, mas amplifica um problema que já existia – cidades construídas sem levar a sério o comportamento dos rios, do solo e do clima.
O mapa da vulnerabilidade: quem mais sofre nas enchentes?
Boa parte das reportagens mostra as enchentes a partir de imagens aéreas: bairros inteiros alagados, pontes caídas, estradas interrompidas. Mas o mapa de quem perde mais quase nunca é homogêneo.
No Brasil, os grupos mais afetados por enchentes e deslizamentos costumam ser:
- Moradores de áreas de risco (encostas, margens de rios, fundos de vale).
- Famílias de baixa renda que não conseguem acessar moradia formal em áreas seguras.
- Trabalhadores informais ou autônomos, que perdem ferramentas, estoque e ponto de trabalho.
- Mulheres, sobretudo chefes de família, que assumem a maior parte do cuidado com crianças, idosos e doentes em abrigos improvisados.
Pesquisas do IBGE e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que a população preta e parda está desproporcionalmente presente em assentamentos precários e favelas, muitas vezes em áreas sujeitas a enchentes. Isso significa que a crise climática também é, na prática, um amplificador de desigualdade racial e social.
O que costuma ficar de fora da cobertura?
- Quantas famílias estavam em áreas de risco já oficialmente mapeadas pelo município.
- Quantas dessas áreas tinham recomendação de remoção, contenção de encosta ou obras de drenagem que nunca saíram do papel.
- Quantas pessoas foram desabrigadas mais de uma vez em menos de cinco ou dez anos.
Sem esse tipo de dado, a enchente aparece como um evento isolado. Na realidade, para muitos brasileiros, ela é recorrente – quase parte do calendário.
Planejamento urbano: quando o “normal” já é errado
As imagens de bairros inteiros submersos levantam uma pergunta incômoda: por que essas casas, prédios e comércios foram autorizados a ser construídos ali?
Em teoria, as cidades brasileiras deveriam ser planejadas com base em:
- Planos diretores atualizados.
- Zonas de ocupação definidas com base em riscos geológicos e hidrológicos.
- Regras claras de impermeabilização do solo, recuo, drenagem e áreas de preservação permanente (APPs).
Na prática, três fatores pesam muito:
- Pressão imobiliária: áreas próximas a rios ou com vista privilegiada são valorizadas, o que estimula grandes empreendimentos mesmo em zonas suscetíveis a alagamentos.
- Omissão e fragmentação institucional: órgãos ambientais, de planejamento urbano e de defesa civil muitas vezes não atuam de forma integrada.
- “Regularização pelo desastre”: ocupações irregulares, às vezes toleradas por anos, só ganham atenção depois de um grande evento, quando a situação já é crítica.
Isso não é exclusividade do Sul. Exemplos recentes em diferentes regiões mostram o mesmo padrão:
- Deslizamentos em Petrópolis (RJ), em 2022, atingindo áreas onde já havia alertas sobre risco geotécnico.
- Enchentes em Recife e Região Metropolitana (PE), com ocupações em áreas de mangue e encostas instáveis.
- Cheias recorrentes na Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG), com impermeabilização intensa do solo e rios canalizados.
Quando a enchente acontece, o foco costuma ficar na chuva “anormal”. Mas pouco se discute que, em muitas cidades, o “normal” já está errado há décadas.
Infraestrutura esquecida: drenagem, rios e diques fora do noticiário
Enquanto helicópteros sobrevoam áreas inundadas, quase não se fala de itens menos “fotogênicos”, mas decisivos, como:
- Capacidade da rede de drenagem urbana.
- Situação de manutenção de diques, comportas e bombas.
- Grau de assoreamento de rios e canais.
- Porcentagem de solo impermeabilizado na área urbana.
Em muitas cidades brasileiras, a drenagem urbana opera perto do limite mesmo em dias de chuva forte “normal”. Quando um evento extremo ocorre – como chuvas intensas em poucos dias, associadas a sistemas meteorológicos potentes, que se tornam mais prováveis com a crise climática –, a infraestrutura simplesmente não acompanha.
Além disso, obras de macrodrenagem muitas vezes seguem lógicas antigas, focadas apenas em “retirar a água rápido” de um bairro, sem considerar:
- Impacto a jusante (em cidades ou bairros abaixo no curso do rio).
- Preservação de áreas de várzea, que funcionam como “esponjas naturais”.
- Soluções baseadas na natureza (parques alagáveis, jardins de chuva, renaturalização de rios).
Esses temas raramente viram manchete. Mas são justamente eles que definem se uma cidade vai enfrentar a próxima enxurrada com resiliência ou com colapso.
O custo econômico da enchente e o silêncio sobre prevenção
Outra dimensão pouco explorada é a econômica. Depois da tragédia, é comum ver números como “prejuízo de bilhões de reais” em infraestrutura, agricultura e comércio. No entanto, quase ninguém compara esse valor com o que teria custado investir em prevenção.
Alguns estudos internacionais e nacionais apontam uma relação relativamente estável: cada real investido em prevenção e adaptação a desastres pode evitar algo entre 4 e 7 reais em prejuízos futuros. Isso inclui:
- Obras de drenagem e contenção bem planejadas.
- Sistemas de alerta precoce eficientes.
- Políticas de uso e ocupação do solo que evitem novas áreas de risco.
- Programas de reassentamento dignos e bem localizados.
No Brasil, porém, os dados de execução orçamentária mostram um padrão recorrente:
- Recursos para prevenção (obras estruturantes, monitoramento, mapeamento de risco) são cronicamente subutilizados ou contingenciados.
- Após um grande desastre, aumentam os gastos emergenciais, muitas vezes feitos sem planejamento de longo prazo.
- Meses depois, o orçamento de prevenção volta a ser comprimido, até o próximo evento extremo.
É como se a conta só fosse apresentada quando a água já chegou ao teto. E a discussão pública quase nunca inclui a seguinte questão: quanto poderíamos estar economizando – em dinheiro e em vidas – se a lógica fosse invertida?
Governança e coordenação: quem cuida de quê quando tudo alaga?
As enchentes no Sul também evidenciaram a complexidade da gestão de desastres no Brasil. A responsabilidade é dividida entre:
- Municípios (defesa civil local, planejamento urbano, limpeza de bueiros, mapeamento de risco).
- Estados (coordenação regional, apoio logístico, integração de informações).
- União (CEMADEN, repasses emergenciais, políticas nacionais de proteção e defesa civil).
Na teoria, essa divisão permite uma resposta articulada. Na prática, surgem problemas conhecidos:
- Informações técnicas que não chegam de forma clara às prefeituras e à população.
- Falta de integração entre sistemas de alerta, sirenes, SMS, rádios comunitárias e redes sociais.
- Planos de contingência pouco treinados ou desconhecidos pelos próprios moradores.
- Conflitos políticos atrasando decisões importantes, como decretos de emergência ou pedidos de ajuda federal.
Um ponto pouco abordado em reportagens mais rápidas é: quantos municípios brasileiros têm equipes técnicas suficientes para interpretar dados climáticos, elaborar planos de adaptação e articular respostas rápidas?
Em boa parte dos pequenos e médios municípios, a defesa civil é composta por equipes reduzidas, com acúmulo de funções e recursos limitados. Sem suporte técnico estruturado, as prefeituras acabam reagindo mais do que se preparando.
O que muda com a crise climática: o passado já não é um bom guia
Há um aspecto central da crise climática que ainda aparece pouco no noticiário: a noção de que o “clima de referência” – aquele padrão histórico de chuva, temperatura e cheias usado para planejar cidades e obras – está em transformação.
Nas últimas décadas, o IPCC e diversos estudos regionais vêm apontando:
- Maior probabilidade de eventos de chuva extrema em curtos períodos em várias partes do Brasil.
- Alterações nos regimes de cheia de grandes rios.
- Ondas de calor mais frequentes e intensas nas cidades, com efeitos sobre saúde pública e consumo de energia.
Isso significa que projetos de infraestrutura baseados em séries históricas antigas, sem considerar projeções climáticas futuras, podem nascer obsoletos. E, ainda assim, muitos investimentos continuam sendo planejados como se o cenário de 2050 fosse parecido com o do ano 2000.
Quando se fala em “adaptação climática”, não se trata apenas de plantar árvores ou instalar painéis solares. É, sobretudo, revisar:
- Critérios de dimensionamento de drenagem, barragens, pontes e estradas.
- Localização de habitações populares e equipamentos públicos (escolas, hospitais, creches).
- Planos diretores, com mapas atualizados de risco e de áreas a serem preservadas ou desocupadas.
Sem essa atualização, as cidades ficam presas a um passado que já não descreve o clima que está vindo.
O que poderia estar no centro do debate e ainda não está
Em vez de apenas perguntar “quando a água vai baixar?”, outras questões poderiam ocupar mais espaço no debate público – e na cobertura jornalística – após enchentes como as do Sul:
- Quais bairros e grupos sociais foram mais atingidos e por quê?
- Quantas pessoas perderam a casa pela segunda ou terceira vez em poucos anos?
- Qual é o estado real da infraestrutura de drenagem, diques e barragens da cidade?
- O plano diretor leva em conta cenários de crise climática até 2050 ou 2100?
- Que obras e políticas de prevenção foram prometidas após os últimos eventos extremos – e quantas foram de fato executadas?
- Quanto o município investe em prevenção por ano, em comparação com o que gasta em reconstrução depois dos desastres?
Essas perguntas não têm respostas simples, nem manchetes fáceis. Mas são essenciais para transformar o ciclo de “tragédia – comoção – esquecimento” em um processo de aprendizagem e mudança.
Para o leitor, a reflexão também é prática: a cidade onde você vive tem mapas de risco acessíveis? Sirenes funcionando? Canais oficiais de alerta em caso de enchente? As escolas dos seus filhos sabem o que fazer se o bairro for inundado?
A crise climática não está apenas “no Sul” ou “no futuro”. Ela já está moldando o cotidiano de milhões de brasileiros. Olhar para as enchentes com atenção aos dados, às estruturas e às decisões – e não só às imagens mais chocantes – pode ser o primeiro passo para exigir cidades menos vulneráveis e mais preparadas.
Porque, se a chuva extrema vai ser cada vez menos exceção, a negligência não pode continuar sendo a regra.
Felipe
