Inflação em queda, mas preços altos: por que o consumidor ainda sente no bolso e como reorganizar o orçamento

Inflação em queda, mas preços altos: por que o consumidor ainda sente no bolso e como reorganizar o orçamento

Os índices de inflação mostram queda, os comunicados oficiais falam em “alívio de preços”, mas o carrinho do supermercado continua pesado. A sensação de que o dinheiro não rende é generalizada, mesmo em um cenário de inflação menor do que nos anos anteriores. O que explica essa aparente contradição? E, mais importante, o que o consumidor pode fazer na prática para reorganizar o orçamento?

Inflação em queda não significa preços baixos

O primeiro ponto é separar duas ideias que costumam ser confundidas:

  • Inflação mais baixa = os preços aumentam mais devagar.
  • Deflação = os preços, em média, caem.

Quando a notícia diz que “a inflação caiu”, na maior parte das vezes isso significa apenas que os preços estão subindo em um ritmo menor do que antes. Se o índice oficial mostrava 10% ao ano e passa para 4%, houve uma melhora importante, mas os preços não voltam ao patamar de dois ou três anos atrás.

Em outras palavras: aquela alta de preço que ocorreu em 2021 e 2022, puxada principalmente por alimentos, energia e combustíveis, já está “incorporada”. A desaceleração da inflação não apaga o que aconteceu; ela apenas impede que o ritmo de alta continue no mesmo patamar.

É como subir uma ladeira: se você passa de 10 km/h para 4 km/h, está subindo mais devagar, mas ainda está subindo.

Por que a percepção do consumidor é pior que o índice oficial

Outro ponto importante: o índice de inflação é uma média. Ele reflete uma cesta de produtos e serviços que tenta representar o consumo de uma família típica, mas a realidade de cada domicílio é diferente.

Alguns fatores fazem essa diferença de percepção aparecer com força:

  • Itens mais sensíveis no dia a dia: alimentos, gás de cozinha, transporte e aluguel têm grande peso no orçamento das famílias de renda baixa e média. Se esses itens sobem mais que a média, a inflação “real” sentida no bolso fica maior que a oficial.
  • Serviços demorando a cair: mensalidades escolares, planos de saúde e serviços em geral costumam ser rígidos para baixo. Mesmo com a inflação em desaceleração, muitos contratos são reajustados por índices passados ou fórmulas específicas.
  • Diferença regional: o custo de vida em capitais, cidades turísticas ou regiões com pouca concorrência no comércio pode subir mais rápido. A média nacional, novamente, não conta toda a história.
  • Memória recente de preços: o consumidor lembra com clareza quanto pagava no botijão de gás, na carne ou na passagem de ônibus há poucos anos. Quando esses preços sobem muito em um curto espaço de tempo, é difícil aceitar que “está melhor” só porque o índice geral caiu.

O resultado é o cenário atual: indicadores apontando moderação inflacionária, mas uma sensação persistente de aperto financeiro.

Renda estagnada x custo de vida em alta

Mesmo com inflação mais baixa, o quadro complica quando a renda não acompanha, ou cresce muito pouco. Em vários momentos recentes, o aumento de salários, aposentadorias e benefícios ficou abaixo da inflação acumulada. Isso significa perda de poder de compra.

Do ponto de vista do consumidor, pouco adianta a inflação cair de 9% para 4% se o rendimento cresceu 2% ou ficou parado. O desequilíbrio continua, apenas com uma velocidade um pouco menor.

Alguns sinais típicos de renda pressionada:

  • aumento do uso do cartão de crédito para despesas básicas (supermercado, farmácia, contas de serviços);
  • crescimento do atraso no pagamento de contas de consumo;
  • dificuldade para fazer reserva financeira, mesmo pequena;
  • troca de produtos de marcas tradicionais por marcas mais baratas ou reduzindo quantidade.

Esses movimentos vêm se repetindo nos últimos anos e ajudam a explicar por que, apesar do discurso de “inflação controlada”, o orçamento doméstico segue estrangulado.

Inflação “oficial” x inflação do supermercado

Há também um detalhe técnico: a inflação medida pelo índice oficial (como o IPCA, calculado pelo IBGE) considera uma cesta ampla, com mais de centenas de itens. Dentro dela, alguns grupos podem cair de preço, enquanto outros sobem.

Um exemplo simplificado:

  • Eletrônicos podem ficar mais baratos ou estáveis, por causa de câmbio favorável ou avanço tecnológico;
  • Alimentos in natura podem subir por causa de clima, safra ruim ou custos de transporte;
  • Serviços podem subir por salários, custos de aluguel e reajuste de contratos.

Se o consumidor não está comprando TV nova, mas está toda semana no supermercado, a percepção dele será muito mais influenciada pelo preço da cesta básica do que pelo barateamento de produtos que ele não consome com frequência.

Por isso é comum ouvir frases como “na televisão dizem que a inflação está caindo, mas no mercado não vejo isso”. Em certa medida, as duas coisas são verdadeiras ao mesmo tempo.

Como reorganizar o orçamento em um cenário de preços altos persistentes

Diante desse contexto, a pergunta prática é: o que pode ser feito? Não há solução simples, mas alguns ajustes ajudam a reduzir o impacto dos preços altos no curto e médio prazo.

Mapear gastos fixos e variáveis de forma realista

O primeiro passo é organizar as despesas por categoria e por grau de rigidez. Um erro comum é subestimar pequenos gastos frequentes e superestimar a capacidade de corte em despesas que, na prática, são difíceis de reduzir rapidamente (como aluguel).

Uma forma simples de começar:

  • Gastos fixos essenciais: aluguel ou prestação de imóvel, contas de água, luz, gás, transporte para o trabalho, alimentação básica, remédios necessários;
  • Gastos fixos “semifixos”: internet, telefonia, planos de streaming, mensalidades de academia, cursos, TV por assinatura;
  • Gastos variáveis: lazer, refeições fora de casa, compras por impulso, delivery, roupas, pequenos serviços;
  • Dívidas: prestações, cartão de crédito, empréstimos, cheque especial.

Com essa separação, fica mais claro o que é possível mexer no curto prazo e o que exige planejamento mais longo.

Renegociar dívidas antes de cortar o essencial

Quando o orçamento não fecha, a primeira reação costuma ser atrasar contas ou “empurrar” parte dos gastos para o cartão de crédito. Isso tende a piorar o problema, porque juros rotativos e cheque especial estão entre os mais altos da economia.

Em muitos casos, vale priorizar a renegociação de dívidas antes de fazer cortes profundos em itens essenciais, como alimentação e remédios.

Algumas estratégias possíveis:

  • Substituir dívidas caras por mais baratas: trocar saldo de cartão ou cheque especial por um crédito pessoal com juros menores, desde que a prestação caiba no orçamento.
  • Renegociar prazo e valor: alongar o prazo de pagamentos para reduzir a parcela mensal, mesmo que o custo total aumente, pode ser uma alternativa emergencial para recuperar fôlego.
  • Evitar “novas compras” parceladas: enquanto a situação estiver apertada, reduzir ao máximo novos compromissos mensais ajuda a estabilizar o quadro.

Quanto mais cedo a renegociação é feita, maiores as chances de conseguir condições menos pesadas.

Ajustar o padrão de consumo sem perder de vista a saúde e o tempo

Boa parte do orçamento está na alimentação, no transporte e no lazer. O desafio é reduzir custos sem transformar o cotidiano em um regime insustentável.

Algumas possibilidades práticas:

  • Planejar compras de supermercado: fazer lista, comparar preços entre mercados e feiras, aproveitar promoções de itens realmente úteis e evitar compras “por impulso” no caixa.
  • Substituir itens caros por equivalentes: trocar cortes de carne mais nobres por opções mais baratas, variar marcas, priorizar alimentos da estação, que tendem a ser mais em conta.
  • Reduzir refeições fora de casa: cozinhar em casa com mais frequência geralmente sai mais barato que delivery ou restaurante, mesmo considerando gás e tempo.
  • Rever deslocamentos: avaliar carona, transporte público, bicicleta ou trabalho remoto (quando possível) para diminuir gastos com combustível ou transporte.
  • Repensar lazer: atividades gratuitas ou de baixo custo (parques, eventos culturais públicos, encontros em casa) podem aliviar o orçamento sem necessidade de isolamento social.

O ponto central é adaptar o padrão de consumo à renda atual, evitando comparar o presente com um passado em que os preços eram outros. A comparação pode ser útil para entender a perda de poder de compra, mas não ajuda na gestão do mês.

Revisar contratos e serviços “invisíveis”

Há despesas que passam quase despercebidas, porque são debitadas automaticamente ou foram contratadas há muito tempo. Em um cenário de preços altos, elas merecem atenção especial.

Vale revisar:

  • planos de celular e internet (muitas vezes é possível reduzir o pacote ou negociar desconto com a operadora);
  • assinaturas de streaming e serviços digitais (quais são, de fato, utilizados com frequência?);
  • seguro de carro, residencial e outros, comparando ofertas com intermediação de um corretor ou plataformas de cotação;
  • mensalidades de academia, clubes ou cursos pouco utilizados.

Pequenas economias somadas em múltiplos contratos podem gerar um espaço relevante no orçamento mensal, sem mexer diretamente nos itens mais sensíveis, como alimentação.

Construir uma reserva, mesmo pequena, em ambiente de incerteza

Quando o dinheiro é curto, falar em “poupança” parece quase irreal. Mas justamente em cenários de inflação passada alta e renda pressionada, qualquer margem de segurança faz diferença.

Não se trata, necessariamente, de grandes valores. Uma estratégia possível é definir um percentual modesto — por exemplo, 3% a 5% da renda — e automatizar a transferência para uma aplicação simples, de baixo risco e liquidez diária.

Essa reserva cumpre alguns papéis:

  • amortecer imprevistos (um remédio caro, um conserto de emergência);
  • reduzir a necessidade de recorrer a crédito caro em situações pontuais;
  • servir de base para objetivos de médio prazo (cursos, mudança de moradia, pequena reforma).

Em ambiente de inflação oscilante, a reserva não é um luxo: é um mecanismo de proteção.

Acompanhar indicadores sem se perder nos números

Por fim, entender minimamente o que significam os anúncios de inflação, juros e crescimento ajuda o consumidor a interpretar as manchetes e tomar decisões mais informadas.

Alguns pontos de atenção:

  • Inflação acumulada em 12 meses: mostra a variação de preços de um ano para o outro. É útil para comparar com reajustes salariais, aluguéis e contratos.
  • Inflação por grupo: observar especificamente alimentos, habitação, transportes e saúde ajuda a entender por que o orçamento está mais pressionado.
  • Taxa básica de juros: influencia o custo do crédito e a remuneração de aplicações simples. Juros em queda tendem a baratear renegociações e, ao mesmo tempo, reduzir o ganho de investimentos conservadores.
  • Indicadores de renda e emprego: taxa de desemprego, rendimento médio e informalidade dão pistas sobre a estabilidade (ou não) da renda das famílias.

O objetivo não é virar economista, mas ter referências para contextualizar a situação pessoal dentro do cenário mais amplo. Quando se entende que a inflação está menor, mas acumulou alta forte nos anos anteriores, fica mais claro por que o orçamento continua apertado — e por que ajustes são necessários.

O que esperar dos próximos meses e como se preparar

Projeções econômicas são sempre cercadas de incerteza, mas alguns movimentos são relativamente previsíveis:

  • reajustes anuais de escola, planos de saúde e aluguel costumam seguir índices específicos e podem vir acima da inflação média;
  • variações sazonais de alimentos (como em períodos de entressafra) continuarão afetando o preço da feira e do supermercado;
  • mudanças em impostos e políticas públicas podem aliviar ou pressionar setores específicos (combustíveis, energia, transporte público).

Do lado do consumidor, a estratégia mais prudente é:

  • evitar assumir dívidas longas com parcelas altas em relação à renda;
  • manter atualizado o controle de gastos, em planilha, aplicativo ou até caderno;
  • acompanhar reajustes anunciados com antecedência e renegociar quando possível;
  • aproveitar períodos de renda extra (13º salário, hora extra, trabalhos temporários) para reduzir dívidas ou reforçar a reserva, e não apenas para aumentar consumo imediato.

A inflação em queda é, sem dúvida, uma notícia melhor do que o cenário de alta acelerada. Mas, para o orçamento doméstico, o ponto central não é apenas a variação percentual dos índices; é a combinação entre preços já elevados, renda disponível e capacidade de adaptação.

Enquanto a recuperação do poder de compra não chega de forma mais ampla, reorganizar o orçamento, revisar prioridades e ganhar clareza sobre para onde vai cada real são passos fundamentais para atravessar esse período com o menor desgaste possível.

Felipe